segunda-feira, novembro 03, 2014

Separámos perdendo a noção do todo

A vida tem mudado. Ainda bem. Não se poderia estar sempre na mesma. Mas às vezes há que ter atenção às mudanças. Sabemos, infelizmente, que tudo o que tem um início, tem um fim. Não sei se terá sido La Fontaine que um dia escreveu “en toute chose il faut considerer la fin”.  Mas o que vem a seguir?
Na 6ª feira passada, assisti a uma palestra do professor João Caraça, doutorado em Física Nuclear, e atual diretor da delegação da Fundação Calouste Gulbenkian de França. Falou sobre a crise das Humanidades. A natureza humana não muda. Não somos mais inteligentes que os nossos antepassados, temos unicamente mais conhecimentos. No entanto, mesmo apesar desse enorme leque de conhecimentos, continuamos a repetir os mesmos erros.

Os conhecimentos que fomos adquirindo permitem-nos desenvolver outros conhecimentos mas fomos separando os conceitos. No século XVI, a ética separou-se da politica, A luz separou-se da visão. O público do privado, a teologia da filosofia, A ciência da filosofia, A religião do estado.
Toda a Modernidade está baseada na cultura da separação, pois separando fomos conseguindo entender melhor as coisas. No entanto, separámos tanto que perdemos a noção do conjunto, do todo.

E entrámos assim numa crise cognitiva e de valores. Fomos substituindo palavras por outras, que pensamos serem sinónimas, mas que na realidade englobam outros significados. Senão vejamos dois exemplos. Trocámos “natureza” por “meio ambiente”; no entanto… a natureza é neutra, imutável, mas o meio ambiente é como um palco em que nós somos os atores, mas sem saber a história. E esta vai-se alterando sempre. Pensemos no que se fazia antigamente quando havia uma tempestade. As pessoas, amedrontadas, recolhiam-se nas igrejas e pediam ajuda ao céu. Hoje em dia não vale a pena procurar refúgio na igreja, porque nós mesmos, o seu humano, somos os agressores do ambiente, ou seja, somos nós a tempestade.

Trocámos “ciência” por “conhecimento”. Hoje em dia só se fala da sociedade de conhecimento. Mas a que nos realmente nos estamos a referir é à tecnociência, ao que é importante para os mercados: o marketing, a gestão, tudo a que se refere o curto prazo. Perdemos a noção de longo prazo. A ciência estava nas universidades. O conhecimento está no espaço público e, ao passar para o espaço público, perde a sua característica interrogativa e passa a certeza, ou seja, perde-se o pensamento crítico.

Todas estas alterações mostram-nos que há insegurança e complexidade e que é impossível separar as coisas. Temos assim uma sociedade onde há cada vez mais individualismo, violência (a insegurança causa muitas vezes insegurança), desigualdades, exclusão.

Tolentino de Mendonça focou também este aspeto na sua intervenção. Ao perder-se o pensamento crítico, perde-se a curiosidade pelo outro, o saber acolher o outro e a solidariedade - e assim vai-se dando lugar ao medo e à agressividade. Há que recuperar o humano em todas as situações, apela o Papa Francisco. Há que voltar a fazer a experiência da diferenciação, com o eu construído a partir do outro. É na diferenciação que nos construímos. Temos que reencontrar o modelo dual: eu e tu. Este é o motor da construção do ser humano. Temos de encontrar o outro a partir de nós próprios: para que serve ter vivido sem deixar traço como se para os olhos dos outros parece não termos vivido?