quarta-feira, julho 17, 2019

Eduardo - amores tropicais

@ Maria Melo


Eu por ti suspiro, eu por ti dou ais
Por ti eu não vou suspirar jamais!
Por ti eu suspiro, eu por ti dou ais
Por ti eu não vou suspirar jamais!
Augusto do Amaral 

Amores vão, amores vêm. Amores vêm. Amores vão. Encontrei Eduardo por acaso. Caiu-me literalmente nos braços. Tinha-me mudado por uns anos para São Tomé, a mítica ilha sobre a linha do Equador. A vida corrida lânguida, sem pressas. Não sentia falta de nada de Portugal. Sentia-se parte daquelas gentes.
Entre os novos hábitos instalados, não prescindia dum passeio pela praia mesmo defronte à casa que tinha alugado. Uma praia mesmo a meu gosto, com muitos coqueiros, alguns inclinados sobre a areia e sobre a água azul e morna, outros bem altivos, tentando chegar ao céu. Um dia, já o sol se estava a preparar para mergulhar no horizonte, passeava-me pela praia. Tinha sido um dia cansativo, com muito trabalho. Completamente absorta nas dificuldades que tinha presenciado nessa tarde ao visitar um dispensário, não reparei que a praia não era só minha como sempre acontecia. De repente, um cão ladra-me mesmo junto de mim. Assustei-me e desequilibrei-me. Caí… nos braços de Eduardo, um cooperante que tinha acabado de chegar à ilha. Eduardo, um engenheiro ligado ao petróleo, chegara a São Tomé havia somente uns dias, com um contrato de seis meses. Para evitar as saudades, tinha levado o seu cão predilecto, um rafeiro castanho, muito leal, encontrado a vaguear nos bosques perto da casa onde vivia no litoral lisboeta.
E agora ali estava, numa romântica praia santomense comigo nos braços. Ele que até atinha aceite o desafio para se esquecer da separação de Catarina e se afastar por uns tempos de mulheres atraentes. “Vou para ali como se fora para um desterro. Na plataforma petrolífera só há homens, não tenho de me preocupar”. Mas ei-lo, somente dois dias depois da chegada, com uma mulher nos braços. Apesar de não ser linda de morrer, tinha um olhar firme, decidido, algo que não queria nas mulheres mas que o atraía fatalmente.
Recompus-me o mais rapidamente possível.
- Peço-lhe imensa desculpa. Desequilibrei-me.
- Não, eu é que lhe peço desculpa. O meu cão ladrou-lhe sem nenhuma razão…
- … e eu aqui não costumo encontrar cães. Na realidade, nunca encontro ninguém…
- Ai, sim? As pessoas daqui não vêm gozar estes fins de tarde resplandecentes?
- Onde é que elas têm disponibilidade de espírito? Ainda não reparou que a vida aqui é vivida dia após dia. O importante é arranjar que comer no final do dia. Passear-se na praia …
- Cheguei a São Tomé há apenas dois dias…
- Então, isso explica tudo. Está de férias? Bem, com um cão…
- Estou a ficar com fome – disse Eduardo.
- Posso convidá-la para jantar? Afinal, tenho de a indemnizar pelo susto que o meu cão lhe pregou…


Porque não? – Pensei.
No início da estrada que dava à praia havia um cafezinho. Melhor, uma espelunca. Sentámo-nos num tronco da árvore caída que servia de banco. À porta havia um grande jaca.
- Gosta de jaca? – Perguntei.
Eduardo não fazia a mínima ideia do que lhe estava a falar.
- Ali, vê ali aquele fruto enorme? É jaca.
- Aquilo … come-se? Pensava que era decoração.
Solto uma gargalhada bem sonora.
- Bem se vê que acabou de chegar. A jaca é uma delícia. A polpa é muito macia e muito saborosa. E muito doce.
Também pendurado á porta, estava um belo espadarte.
- Vamos a um peixinho grelhado?
Conversámos sobre São Tomé. Sobre Portugal. Sobre África. Sobre nós.
Passámos a ver-nos diariamente até Eduardo ir para a plataforma. Sempre que podia vinha até à ilha. Ficava comigo. Dávamos grandes passeios. Conversámos muito. Amávamos muito.
Perto e longe. Só pensávamos um no outro. Dele recebi uma carta de Pequim, quando lá foi a uma conferência.
en plein ciel…
Sabes o que isto quer dizer?
- que eu, quando te vejo, flutuo
(a imagem é gira)

Adorei o almoço
Adorei o sol
Adorei vê-la
Não gostei da espera pelo bacalhau
Não gostei do gato
Não gostei de te ver partir…
    
                            Passa bem!
Beijo-te nas maminhas,
 isto é, no ar!

Quando fui a uma convenção internacional, recebi no hotel uma linda carta.
Ontem fiquei danado porque não vi a minha namorada!
     Não lhe dei beijinhos.
     Não almocei com ela.
     Não lhe meti a língua na boca dela.
E não a pus nua! com o relógio novo.
Para a semana tudo isto será exequível (se tu quiseres)
                                        Eu adorava!
                                        Adeus!

Mas, aos poucos, o amor foi-se evaporando. Separámo-nos de comum acordo. Regressei a Portugal.
Algumas semanas depois recebi uma linda carta. Eduardo afinal e ainda estava apaixonado….
Várias vezes quis escrever-te, mas adio sempre este momento.
 Aqui continuo retiro neste país por motivos de trabalho. É verdade, o projecto tem-se alargado, apesar de tudo correr com sucesso. Tantas vezes encontro-me com os meus pensamentos em ti. Posso confessar-te uma cisa? Tu foste leita pela minha consciência como a mulher tipo. Por vezes descubro o meu olhar que recai sobre morenas de cabelo ondulado, altas e elegantes, com presença e alegria no sorriso. Tu foste a pessoa que mais me ajudou a passar aqueles momentos negros e a construir todo o optimismo de que actualmente sou possuidor. Os teus ensinamentos modificaram a minha forma de encarar a vida.
Queria contar-te um segredo….
Actualmente tenho uma relação muito bonita com uma rapariga maravilhosa. Coincidência? É alta, atrevida e maliciosa, cabelos negros, ondulados, olhos castanhos e pequeninos, enterrados na maçã do rosto. Conhece-la?....
Beijos e abraços”
@ Maria Melo


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quinta-feira, julho 11, 2019

Alberto – “Não há coincidências…. Gosto de si!”



@Maria Melo


Adoro estar ao pé de si,
de lhe lamber a boca,
de lhe chuchar as gémeas,
de lhe beijar as costas,
de amá-la colado a si.
Deixe-me gostar de si,
à minha maneira mística!
A de adoro-a



Quando vinha Lisboa, Alberto gostava de ir a um concerto. Apesar de viver num monte alentejano e de ter muito orgulho na sua profissão de agricultor, ou melhor, como ele gostava de dizer, camponês, era um melómano sem cura. Sentia a música em tudo o que fazia. Ouvia a erva a crescer. Dizia que, pelo som, sabia distinguir se estava num campo de batatas ou de feijão, pois o feijão fazia, ao crescer, uma música diferente das batatas.
Tinha-a conhecido por mero acaso num concerto. Mas, convenhamos, todos sabem eu não há coincidências. Era um dia muito quente de verão e Alberto estava em Lisboa a tratar de assuntos relacionados com os empréstimos bancários que tivera de pedir para o seu projecto agrícola.
Ao passar pelo Palácio Foz reparou num papel preso à porta ao virar da esquina do elevador da Glória: “Hoje recital de piano por Lorenzo Bravo – Lorenzo Bravo toca Bach e Bravo”. Bach e Bravo?! Quem é este pianista que se pretende pôr à altura de Bach?
Alberto nunca tinha ouvido falar dele. Olhou para o relógio. O recital iria começar dentro de minutos E porque não? pensou. É sempre bom ouvir um bom recital. Vamos cá verse este Bravo merece os meus “bravôs”.
Passou o hall de entrada com duas colunas adossadas, de mármore, subiu a grandiosa escadaria deste palácio setecentista que antigamente era conhecido por Palácio Castelo Melhor e entrou na Sala dos Espelhos, bem gosto novo italiano.
Praticamente todos os lugares estavam ocupados. O calor era sufocante. Alberto sentou-se na 4ª fila. Na sala entrou Lorenzo Bravo, um jovem pianista italiano de porte altivo. Sentou-se ao piano e começou a tocar o seu repertório bastante eclético. Sendo também ele próprio apresentou um programa no qual alternava Bach e obras próprias.
Alberto põe-se a observar o público. O homem careca da fila da frente, de olhos fechados, abanava a cabeça ao som da toccata, BWV 830. A mulher gorda ao lado cerrava os olhos mas não mostrava nenhuma reacção emotiva. A jovem na fila do lado agarrava o programa, mascava a sua pastilha e vagueava o seu olhar pelos dourados do tecto. A senhora da saia branca e casaco azul, de cabelo curto e bem penteado, levantou-se para ver melhor a mestria com que Lorenzo Bravo tocava a sua peça “Hello”, tocando diretamente nos martelos. O homem de casaco azul e calça bege cruzava as pernas, deixando ver uma perna depilada e uma mini-meia branca. Ao consultar o programa tirou os óculos do bolso, fazendo tilintar as chaves, possivelmente do carro com que veio para Lisboa. A senhora ao seu lado, de blusa branca, ligeiramente transparente e cabelo encaracolado abanava-se com o seu leque cor-de-rosa e preto, tentando arrefecer um pouco o ar quente e abafado da Sala dos Espelhos.
- Uma bela mulher, pensou Alberto.
No final do recital, meteu conversa.
- Que belo concerto! - disse-lhe assim à queima-roupa.
- Muito eclético. Maravilhoso. Pena foram os ruídos das chaves. E as eternas tosses…
- É mesmo, parece que as pessoas vêm de propósito aos concertos quando têm tosse – gracejou Alberto.
- E eu que pensei que hoje não iríamos ter tosses. Como nos estamos no Verão…
- E com um calor que só nos faz desejar um gim tónico bem fresco…
- Tem graça, pensei o mesmo.
- Então, e se fôssemos tomar um. Posso convidá-la para um gim tónico?
Ela não tinha planos para a noite e acedeu. Foram ao bar num terraço dum hotel ali perto com uma bela vista sobro castelo. O grande calor da tarde já estava a passar com a brisa da noite que entretanto soprava.
As conversas são como as cerejas e um tema trazia outro. Foram conversando sem se aperceberam das horas até que um empregado os interrompeu:
- Desculpem, mas vamos encerrar.
Alberto olhou par ao relógio. Já passava da uma da manhã! Como o tempo tinha voado.
- Bem, aprece que nos estão a expulsar. Amanhã regresso a Mértola. Posso convidá-la pra lá ir passar o fim-de-semana para continuarmos a nossa conversa?
Ela ficou indecisa. O rapaz era bem disposto mas só se conheciam há apenas algumas horas. Mas por outro ado, porque não? Ela estava divorciada, sem namorado. Que havia a perder? Aceitou.
Foi o início duma nova etapa na sua vida. Alberto era uma alma positiva por natureza. Um grande amante e muito romântico, sempre com pequenos gestos, muito apaixonados e cheios de originalidade.
O fim-de-semana alargou-se para uma semana.
De regresso a Lisboa, ela foi recebendo missivas quase diárias de Alberto que ficara em Mértola. Nas cartas revela sensibilidade, o amor, criatividade e imaginação e acima de tudo, cheias de paixão. Cartas nunca dirigidas nem assinadas.
A primeira era somente uma folha branca, dobrada em três onde à esquerda escrevera: “Não há coincidências…” e no fundo, à direita “Gosto de si!”
No dia seguinte, nova carta, escrita igualmente a caneta de tinta permanente, azul:
Tu me manques!
Mi manchi
Me haces falta
I missed you

Tradução: És um monstro!
Já não sei comer sozinho à mesa
Olho em frente e você não está cá

De manhã o telefone não toca
e ele espera (a ela)!


A vida corria de feição. Viajaram muito. Correram mundo. Amaram muito.
Quando a vida profissional os afastava, as cartas mantinham-nos unidos.

Não há sítio melhor que
O Palácio Foz!
Foi lá que a conheci!
Foi lá que a amei!
Foi lá que me enterneci!

Parabéns! A ela por aturá-lo!
(Com tanta gente interessante neste mundo
E que olha tanto para si!)

Preciso dos teus beijos
            da tua boca
da tua língua
das tuas carícias
da tua voz
Em resumo: de ti!

Já lhe falei 2 x

Por favor não venda mais gruas
Compra-me a mim

                        O teu
                        Valentim
@Maria Melo


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sexta-feira, julho 05, 2019

Tiago – o marido

@Maria Melo


Conhecia o Tiago desde sempre. Ele andava num colégio de rapazes e ela num de raparigas. Tinham muitas actividades juntas. Ele gostava de tudo o que estava ligado ao desporto. Ela sonhava e desenhava. E apoiava-o. Como quando ele se começou a dedicar à vela, chegando a velejador olímpico nas classes de Dragão e Star. Enquanto eles treinavam, ela ficava sentada no areal a desdenhar o que via. António tinha 15 anos, quando embarcou em Sesimbra, na sua primeira grande aventura da vela. Com mais dois amigos, que tinha conhecido nas competições, Jorge e Michel. Num veleiro clássico de 12 metros, fizeram juntos nas férias de verão a costa de Portugal, de Espanha e de Marrocos, sonhando com uma volta ao mundo em barco à vela. Ela apoiava Tiago e os seus dois amigos como se de irmãos de tratasse. E desenhou o que Tiago e os amigos lhe descreveram.
Quando acabou o ano lectivo e regressou a África, onde os Pais moravam, Tiago pediu a um amigo que lhe fosse para lhe entregar um bilhetinho ao aeroporto, muito dobradinho e que na parte de fora tinha escrito: Depois de ler rasgue e deite fora, sim? (Não presta). Não é nada de importância:
.
Amor
Já sei que não era nada a sério, escrever eu ou tu…. De mais a mais nem sou primo, nem menino daqueles que a tua amiga inventa. Mas como não te vou dizer adeus, quis escrever agora, já.
Boa viagem, sem enjoar, como eu, boas férias, estuda a Matemática, como eu vou fazer e … juizinho. Daquele que eu disse pelo telefone mas não expliquei (talvez explique um dia).
                Um beijinho pequenino = a um que dei na sua (enorme) mão
                Adeus
O teu namorado enamorado

As férias em Nova Lisboa passaram-se… a estudar Matemática para o exame de Setembro. Não fazia mais nada do que resolver os problemas do livro de exercícios do Palma Fernandes. O estudo era felizmente interrompido pelas cartas de Tiago, que iam chegando, atrasadas, mas a um ritmo regular.
Estás bem, amor querido? E estes dias sem mim a guardar-te, têm sido bons ou muitos cansativos?
Eu amo-te, bijú, e tenho saudades tuas. Custa-me muito não te ter cá depois de já estar habituado aqui, em Santa Margarida, à tua presença, embora leia menos e faça menos coisas úteis. Mas é o amor!....
Quero comprar um carro. Até os meus Pais me dizem que um carro faz muita falta e faz já parte da vida. Vou ver se acelero a compra do automóvel. Toda a gente me aconselha o R5. Vai ser uma classe, tu a guiares um R5!
Vou esperar ansiosamente pelo dia do teu regresso! Deus queira que andes bem, amor. Eu estou sempre contigo.
Beijo-te, querida!
Teu (quase) marido apaixonado.

Assim que acabaram o liceu e juntaram algum dinheiro, casaram. Amavam-se perdidamente. Ele começou a trabalhar com técnico de ar condicionado e ela, apesar do seu aspecto frágil, vaporoso, candidatou-se a vendedora duma empresa de comercialização de gruas. A única mulher numa equipa só de homens. E a melhor. A que mais vendia.
Sebastião nasceu como verdadeiro fruto do amor. Ela e Tiago adoravam-no. A vida corria bem mas ela começou a sentir que lhe faltava o ar. O único escape que tinha eram os seus bloquinhos. Com os seus desenhos descrevia o que lhe ia na alma. Sentia porém que precisava ainda de aprender muito.
- Sei desenhar, Tiago, mas tenho de aprender as técnicas.
- Amorzinho, tu és boa por ti. Não precisas de aprender técnicas nenhumas.
Ela voltava para os seus caderninhos, os seus desenhos não a satisfaziam. Sim, eram bons, mas podiam ser melhores.
Tiago não compreendia as suas ânsias de mais saber.
- Mas para que queres tu saber técnicas? Tu és vendedora de gruas, melhor ainda, és uma fantástica vendedora. Ainda há semanas ganhaste o prémio de melhor vendedora da Península Ibérica. Queres mudar de profissão? Queres ser pintora? O que queres?
Ela desistiu de lhe tentar explicar. António não entendia que era o desenho que a mantinha viva. Que lhe dava ânimo para enfrentar o mundo seco e sem interesse das gruas. Não, não valia a pena explicar-lhe mais.
E aos poucos foram-se afastando. Ele passava o tempo livre no mar, no barco. Ela desenhava enquanto Sebastião brincava.
Até que sentiram que já nada tinham em comum. Eram amigos, muito amigos, mas o amor, a paixão de outrora tinha-se perdido no quotidiano.


@Maria Melo

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terça-feira, julho 02, 2019

António – romance de um dia na estrada (à imagem de Sérgio Godinho)



@Maria Melo


Se queres ser o meu senhor
e teres -me sempre ao teu lado
não me fales só de amor
fala-me também do fado.
Frederico Carvalho & Aníbal Nazaré

"Vox populi, vox Dei", diziam os antigos, o povo português costuma dizer (infelizmente) "Quanto mais me bates, mais gosto de ti". Há quem não acredite, mas basta ver as novelas brasileiras para se acreditar. Ah, é verdade, há também quem diga "A minha vida dava um romance"; eu, porém, digo: "A minha vida dava uma novela brasileira, ou um romance de faca a alguidar à portuguesa."
O início é igual a todos os inícios: era uma vez um rapaz e uma rapariga. Começando assim, facilmente se deduz o que vem a seguir. Foi o amor à primeira vista - o rapaz ao ver a rapariga apaixonou-se loucamente. A rapariga surgiu na vida dele como um relâmpago no meio da noite. Ela vinha do país do sol, da vida, das praias, onde se tentava aproveitar a vida (aliás, viver não é só trabalhar), onde o dinheiro não era tudo, mas enfim, onde verdadeiramente se vivia.
Era como cantava Sérgio Godinho: "Tu que me falas de estradas / E eu só conheço um carreiro”.
Ele, coitado, além de viver num país onde tudo o que se disse acima, não existia, tinha tido uma infância também diferente. Uma infância sem amor, sem família, onde havia choro, ranger de dentes, discussões, destruição física e espiritual. Ela não: a família dela era quase a família ideal, um ambiente familial de paz e amor, que fez com que ela crescesse generosa, livre, responsável, firme, forte. Ela queria “conquistar " o mundo, queria andar por todo o lado e, mais tarde, com toda a experiência recolhida, transmitir e dar tudo a uma família. Ele queria "conquistar" uma rapariga e começar uma família. Ela, vinda de uma família numerosa, não queria que lhe dessem tudo, não queria o exagero. Ele vindo de uma família de filho único precisava do exagero. E começou por lhe querer oferecer o céu e a terra, a chuva, o vento, os flocos de neve, grandes declarações de amor. Declarações de amor noite e dia, 24 horas por dia.
"Amo-te, amo-te, amo-te, tu és para mim o ar que respiro, sem comer e dormir posso eu, viver sem ti é que não..." E ela, que queria respirar, começou a sentir-se sufocada. Ela que queria ter o prazer das pequenas coisas, o prazer de ter de fazer trabalhar o seu mecanismo do pensamento, começou a não ter tempo de o fazer - bastava ela pensar "Gostava de ter o céu...", e o céu aparecia-lhe nas mãos.
Adoro-te, adoro-te, adoro-te, ADORO-TE, adoro-te, adoro-te, adoro-te, ADORO-TE” – uma folha A4 metida debaixo da porta dela.
Ela oferecia-lhe amizade e ele esperava que ela lhe dissesse grandes declarações de amor, que ela ficasse quase que amuada se ele saísse de ao pé dele, que ela lhe dissesse "Tu és o ar que respiro". Mas para ela, ele era só um bom amigo.
E ele insistia, com cartas e declarações de amor.
Sabe que dia é hoje?
Tiveste o azar de conhecer um grande chato
Que mesmo longe se lembra sempre de ti
e te manda um ____________________ (escolhe!)”
O tempo passou, ou melhor, foi passando. Para ele, ela era a mais bela, a mais inteligente, a mais dotada. Ele mostrava-se fraco, no sentido de sentido de falta de autocontrolo, no sentido de perder a verdadeira dimensão das coisas.
Ele já lhe tinha contado como tinha reagido quando a sua primeira experiência de vida em comum tinha fracassado. Ela pensou, ele é mesmo extremista; nunca se preocupou muito, pois nunca lhe tinha prometido nada. E eis que um dia, no meio de uma conversa, ela diz-lhe:
- Eu acho que entre nós dois não dá.
Ele ficou imóvel, depois desatou num choro profundo enquanto lhe rogava:
- Não digas isso, volta para mim, não te vás, deixa-nos, ao menos, tentar.
- Mas tentar para quê, se eu sei que não dá?
Ele só chorava, e chorava, e chorava e implorava:
- Volta, volta, volta!
Passado algum tempo, quando ela lhe voltou a dizer o mesmo, ele perdeu o controlo. Ela encontrou-o sentado à porta do quarto com uma garrafa de vinho na mão.
- Tem juízo! - disse-lhe ela. - Vai para o teu quarto dormir.
Ele para o quarto foi, mas passou a noite a pôr-lhe debaixo da porta folhas A4 com declarações de amor, com pedidos de retorno.

As coisas foram piorando. Ela não se sente livre, já agora, não estando sequer comprometida com ele. Ele 'fiscaliza' quando ela sai, quem lhe telefona, lê-lhe os recados que lhe deixam na porta - esquece que "se queres ser o meu senhor / e teres -me sempre ao teu lado / não me fales só de amor / fala-me também do fado."
Ela tinha um amigo, com quem saía algumas vezes e com quem gostava de estar. E eis que os ciúmes surgem. E um dia quando ela voltava de um passeio com o amigo, ele corre atrás do carro do amigo e dá-lhe um papel: "Querido Rui! Apesar de me teres tirado a minha princesa, eu não quero ser teu inimigo. Convido-te para um chá."
Logo o amigo comentou:
- Uma pessoa não tira ninguém a ninguém. Somo todos livres e independentes. Parece que estamos no jardim infantil e gritamos: "Essa boneca é minha!". Diz-lhe somente que não o posso ajudar.
Chegou a noite da passagem do ano. Ela saiu com o amigo. Quando volta, ele diz-lhe:
- Se amanhã ainda me queres ver, é melhor chamares já a ambulância!
Ela vai ao quarto dele e tira-lhe das mãos o aparelho de medir a tensão arterial, depois a faca do pão e por fim um escalpelo. E diz-lhe:
- Esta história da chantagem emocional não funciona comigo. Antes pelo contrário, tem um efeito negativo.
Uma última declaração de amor, onde já não existia amor, mas ele não sabia.
O que é que te aconteceu?
Falei várias vezes para a tua empresa, mas não te encontrei.
Deixe recado.
Não me deixes assim.
Cada vez que, na estrada, vejo uma grua, fico a pensar em ti. Bem sei que não é romântico, mas é o que sinto.
Volta!
Ele é boa pessoa, mas...
@Maria Melo


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segunda-feira, julho 01, 2019

Luísa


@Maria Melo





Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Florbela Espanca

 

O dia estava quente. Assim que saiu do carro avisou logo:
- Não posso apanhar sol na cicatriz.
Não via nada. Que cicatriz? Com o seu vaporoso vestido branco, Luísa avançava esvoaçando até à grande sombra da árvore centenária no meio do jardim. E começou a contar.
- Nem imaginas como eu estava. Parecia uma bruxa. Só não comecei a voar sobre uma vassoura porque mal me podia mexer.
As dores de amor podem mesmo matar. Ao ver-se traída, abandonada como um trapo velho, Luísa mostrou-se forte. Mas a raiva que sentiu por dentro, começou a grassar. Primeiro rebentou um pequeno herpes no canto do lábio, depois outro, e outro e outro.
Eu estava longe de tudo, Não sabia o que se tinha passado. A última vez que nos víramos tinha sido há um ano, estava ela curada dum terrível vírus que quase a matou. Toda feliz tinha-me enviado um SMS: “Já não tenho vírus. Foguetes de cores variadas”.
Este vírus foi mais um obstáculo difícil de ultrapassar que lhe tinha consumido quase toda a força anímica. “Um azar nunca vem só”, diz o povo. E na realidade assim tinha acontecido. Sebastião, o filho tinha casado e aos poucos foi-se afastando dela. Sem razão, pelo menos aparente. Primeiro com desculpas que pareciam plausíveis, depois com desculpas esfarrapadas até que rompeu o contacto de vez. Por essa altura, Luísa teve de ser operada ao apêndice. Uma cirurgia mais do que rotineira. Perdeu muito sangue e teve de receber uma transfusão de sangue – e, azares dos azares, recebeu sangue dos infelizmente famosos lotes contaminados que vieram da Áustria e aos quais a então ministra da Saúde portuguesa tinha feito orelhas moucas aos avisos. Esses produtos estavam infectados com o vírus da hepatite B e com excesso de pirogénios.
Na altura nada sabia. A hepatite C é uma doença viral que leva à inflamação do fígado e raramente desperta sintomas.  Luísa vivia sem saber o que se passava dentro do seu corpo. É uma doença malandra que geralmente não manifesta sintomas na sua fase inicial. Os sintomas explodiram quando Luísa se encontrava sem defesas emocionais.
O caminho da recuperação foi longo. Havia longas filas de espera para o tratamento e até para o transplante. Como vivia dentro e fora, Luísa conseguiu ser tratada num hospital estatal francês. Mesmo não tendo problemas financeiros, o tratamento de mais de 20 mil euros por série era incomportável à sua bolsa. O tratamento, à base de uma combinação de medicamentos antivirais a serem tomados ao longo de várias semanas, foi muito agressivo tanto física como psicologicamente. O médico tinha-a avisado. Iria sentir-se extremamente cansada e ter dores de cabeça terríveis. Iria cair o cabelo. Iria emagrecer tanto que iria ficar com o aspeto de anorética. A visão iria fiar muito diminuída e haveria dias em que pareceria que não conseguiria respirar. Iria sentir problemas de comportamento e variações no humor.
Mas pior que tudo seria a depressão que se iria instalar de tal forma que até poderia levar ao suicídio. O médico tinha-a avisado de que os doentes com hepatite C crónica têm uma maior prevalência de perturbações psiquiátricas e que Luísa deveria ser acompanhada por um psicólogo. Boa hora em que ela procurou ajuda: sem o seu apoio teria com certeza posto um ponto final à vida. O mundo parecia desabar.
Felizmente, aos poucos, Luísa foi melhorando. O apetite voltou. A pele deixou de estar tão seca. As erupções cutâneas foram desaparecendo. O que mais demorou a voltar foi o apetite sexual. Michel teria também de ter paciência e saber esperar.
Eu pensava que tudo estava a correr bem. Desde o final do tratamento, Luísa tinha organizado muitas exposições. O trabalho criativo tinha sido o seu grande escape a todos estes problemas, que embora se soubessem passageiros incomodavam imenso. Pelas redes sociais, tinha seguido as inaugurações das exposições em tantos lugares, Lisboa, Paris, Biarritz, Bruxelas, Milão, até na Vidigueira e em Vila Real.
Agora, ao ouvir a história desde novo episódio clínico de Luísa, fiquei apreensiva. Não sei porquê, mas achei que se tratava de uma doença psicossomática. Que se passaria com a Luísa? Não quis perguntar-lhe assim de chofre.
. Nem imaginas, um dos herpes cresceu como um tumor no pescoço – para fora e para dentro. Estava em risco de morrer asfixiada.
Seria o ignis sacer, o fogo selvagem, de que falavam os antigos? A ira selvagem que estava escondida e que agora se manifestava. A erisipela é como um enfraquecimento da resistência anímica que pode levar a um ataque de herpes, que algo afetou o sistema nervoso que agora se revela. Algo se tinha passado. Não quis perguntar-lhe logo de chofre. Ela iria contar-me entre duas garfadas.
@Maria Melo


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terça-feira, dezembro 04, 2018

A Coroa do Advento


Foi dos países de língua alemã que veio a tradição da coroa do Advento.
Tudo nasceu em 1839 com o teólogo evangélico-luterano Johann Hinrich Wichern (1808–1881) no norte da Alemanha. Estávamos em pela Revolução Industrial e Johann Hinrich Wichern pretendi encurtar o tempo de espera pelo Natal às crianças de rua.
Em 1833, Johann Hinrich Wichern acolheu muitas crianças que viviam em grande pobreza numa antiga quinta. Durante o Advento, as crianças estavam sempre a perguntar quando chegava o Menino Jesus. Johann Hinrich Wichern  decidiu então decorar uma roda duma carroça com 20 pequenas velas encarnada e 4 velas grandes brancas como se fosse um calendário. Todos os dias do Advento, acendia uma vela pequena e nos domingos do Advento uma vela grande. Assim as crianças conseguiam contar os dias que faltavam até ao dia de Natal.
Com o tempo, passaram a ser usadas somente as 4 velas correspondentes aos domingos do Advento. Em 1860 começaram-se a entrançar anéis de palha com raminhos verdes de abeto e a decorar com 4 velas.
A 1ª coroa a ser pendurada numa igreja católica foi em Colónia em 1930, na catedral.
No entanto, as coroas de ramos decorada com velas já se usavam no norte de Europa muito antes de chegada do cristianismo, que – tal como aconteceu com outras tradições pagãs – foi integrada na simbologia cristã. O círculo é um símbolo universal relacionado com o ciclo contínuo das estações. As velas acesas significam a persistência da vida durante o período mais duro e escuro da vida: o Inverno.
Algumas fontes sugerem que a coroa, reinterpretada como um símbolo cristão, já era usada na Idade Média. Atualmente simboliza a preparação das pessoas para o Natal.

O círculo da coroa simboliza a nova aliança de Deus com a humanidade. Os ramos verdes da coroa do advento significam a esperança. As fitas vermelhas estão associadas à cor do fogo e do sangue e simbolizam a cor da vida, do amor e do derramamento do sangue de Jesus por nós todos.
Antigamente na Igreja Católica as velas da coroa do advento seguiam as cores litúrgicas às vestes sacerdotais: roxo (simboliza a conversão) no 1º e 2º domingos do Advento, cor-de-rosa (simboliza a alegria e expectativa do encontro com Cristo com vista à conversão) no 3º domingo e novamente roxo no 4º domingo.
Na Irlanda usam-se as coroas somente nas igrejas mas com 5 velas. A 5ª vela, branca, é colocada no meio da coroa e é acesa na noite de Natal.
No mundo há muitas outras tradições ligadas às velas, à luz. A Chanukka, a festa das luzes judaica que dura oito dias. O Diwali, uma festa hindu que dura vários dias. A Jöölboom, uma variante da Frísia da árvore de Natal. A festa de Santa Lúcia na Suécia.  


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terça-feira, agosto 21, 2018

Os homens e a urina


Uma das minhas cruzadas é contra os homens que urinam em qualquer parte. Esquinas de ruas, túneis de peões, becos recônditos estão todos “perfumados” com o cheiro nauseabundo de urina masculina.
Como sabemos a bexiga urinária é um órgão do sistema urinário, localizada na cavidade pélvica. Nos homens, a bexiga urinária está localizada diretamente na frente do reto. Já nas mulheres, ela está situada abaixo do útero e na frente da vagina.
Há já uns anos que perdi a vergonha e interpelo – em alto e bom som! - todos os homens que vejo a urinarem em público, normalmente contra uma parede. Que tradição secular é esta que permite que os homens urinem em público e as mulheres não? Será que as bexigas masculinas são mais pequenas que as femininas? Será que o olfato dos homens é mais reduzido e não se incomodam com o horrível cheiro a urina na via pública? Será que a maioria dos homens tem problemas da inconsistência urinária?
Não sei a resposta à minha segunda pergunta. Quanto à primeira é claro: não, não têm! Pelo contrário, a bexiga de uma adulto saudável possui a capacidade de armazenar entre 650 e 800 mililitros de urina. Essa capacidade de armazenamento é menor nas mulheres, pois o útero fica num espaço acima dela.
Estatisticamente sabemos que são as mulheres, crianças e idosos que sofrem mais de incontinência. Porque é que os homens aguentam tão pouco a sensação de bexiga cheia? Será que têm os músculos pélvicos frouxos ou pouco fortalecidos?
Falando bem e depressa: porque é que a maioria dos homens é mijão?

Este problema da micção na via pública é um problema de saúde pública. Ora, porque é que não há leis proibindo-o? Na realidade, há só que só são aplicadas em pouquíssimos casos. Vários são os municípios que têm no seu regulamento que é proibido urinar ou defecar na via pública ou noutros espaços públicos não previstos para o efeito. Há contraordenações previstas e puníveis com coimas até € 5800.

Só que onde está a polícia a fiscalizar o cumprimento da lei? Não podem dizer que não veem, porque eu vejo sempre que saio à rua mais do que uma vez! A polícia não vê porque não quer ver. Porque culturalmente sempre assim foi, os homens sempre fizeram xixi na via pública. E porque a maioria dos polícias são … homens que também urinam na via pública…. Será?

Em todo o caso, este problema não é exclusivo de Portugal. De tal modo que agora o município de Paris decidiu instalar nas ruas da capital francesa urinóis ao ar livre, os “Uritrottoirs”, com o objetivo é reduzir a urina nas ruas de Paris. Foram “vendidos” como sendo inodoros e ecológicos

No entanto, muitos parisienses estão indignados com petições a correrem para que sejam removidos. Porque é que os homens podem urinar legalmente em público? E as mulheres? Porque é que os responsáveis municipais não se preocupam com o bem-estar das mulheres? É claro que as organizações feministas também não apoiam estes novos equipamentos que consideram sexistas. Ninguém precisa de urinar na rua! Como comentou Gwendoline Coipeault, da plataforma europeia EuroGender, à Reuters, estes urinóis "foram instalados como uma proposta sexista: os homens não conseguem controlar-se e com isto toda a sociedade tem de adaptar-se". 

Na Alemanha são muitos os grupos incomodados com a micção na via pública. Em Hamburgo, os habitantes do bairro boémio de St. Pauli decidiram pintar algumas paredes com uma tinta que repele a urina. Ou seja, quando alguém urina para aquela parede, a parede projeta a urina de volta e deixa a pessoa molhada! O slogan desta ação é “Hier nicht pinkeln! Wir pinkeln zurück!” (“Não mijem aqui. Nós mijamos de volta”).




A discussão está lançada. Espero que os governos se debrucem sobre este problema. Soluções já há. Basta começar implementá-las, aplicando multas a quem urinar na via pública. Vamos terminar esta pandemia de homens mijões e deixar de ter as nossas cidades transformadas em urinóis públicos!

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