Luísa
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@Maria Melo |
Eu quero amar, amar
perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...
além...
Mais Este e Aquele, o
Outro e toda a gente…
Florbela Espanca
O dia estava quente.
Assim que saiu do carro avisou logo:
- Não posso apanhar sol
na cicatriz.
Não via nada. Que
cicatriz? Com o seu vaporoso vestido branco, Luísa avançava esvoaçando até à
grande sombra da árvore centenária no meio do jardim. E começou a contar.
- Nem imaginas como eu
estava. Parecia uma bruxa. Só não comecei a voar sobre uma vassoura porque mal
me podia mexer.
As dores de amor podem
mesmo matar. Ao ver-se traída, abandonada como um trapo velho, Luísa mostrou-se
forte. Mas a raiva que sentiu por dentro, começou a grassar. Primeiro rebentou
um pequeno herpes no canto do lábio, depois outro, e outro e outro.
Eu estava longe de
tudo, Não sabia o que se tinha passado. A última vez que nos víramos tinha sido
há um ano, estava ela curada dum terrível vírus que quase a matou. Toda feliz
tinha-me enviado um SMS: “Já não tenho vírus. Foguetes de cores variadas”.
Este vírus foi mais um
obstáculo difícil de ultrapassar que lhe tinha consumido quase toda a força
anímica. “Um azar nunca vem só”, diz o povo. E na realidade assim tinha
acontecido. Sebastião, o filho tinha casado e aos poucos foi-se afastando dela.
Sem razão, pelo menos aparente. Primeiro com desculpas que pareciam plausíveis,
depois com desculpas esfarrapadas até que rompeu o contacto de vez. Por essa
altura, Luísa teve de ser operada ao apêndice. Uma cirurgia mais do que
rotineira. Perdeu muito sangue e teve de receber uma transfusão de sangue – e,
azares dos azares, recebeu sangue dos infelizmente famosos lotes contaminados
que vieram da Áustria e aos quais a então ministra da
Saúde portuguesa tinha feito orelhas moucas aos
avisos. Esses produtos estavam infectados com o vírus da hepatite B e com
excesso de pirogénios.
Na altura nada
sabia. A hepatite C é uma doença
viral que leva à inflamação do fígado e raramente desperta sintomas. Luísa vivia sem saber o
que se passava dentro do seu corpo. É uma doença malandra
que geralmente não manifesta sintomas na sua fase inicial. Os sintomas explodiram quando Luísa se
encontrava sem defesas emocionais.
O caminho da
recuperação foi longo. Havia longas filas de espera para o tratamento e até
para o transplante. Como vivia dentro e fora, Luísa conseguiu ser tratada num hospital
estatal francês. Mesmo não tendo problemas financeiros, o tratamento de mais de
20 mil euros por série era incomportável à sua bolsa. O tratamento, à base de
uma combinação de medicamentos
antivirais a serem tomados ao longo de várias semanas, foi muito agressivo tanto física como
psicologicamente. O médico tinha-a avisado. Iria sentir-se extremamente cansada
e ter dores de cabeça terríveis. Iria cair o cabelo. Iria emagrecer tanto que
iria ficar com o aspeto de anorética. A visão iria fiar muito diminuída e
haveria dias em que pareceria que não conseguiria respirar. Iria sentir problemas de comportamento e variações no humor.
Mas pior que
tudo seria a depressão que se iria instalar de tal forma que até poderia levar
ao suicídio. O médico tinha-a avisado de que os doentes com hepatite C
crónica têm uma maior prevalência de perturbações psiquiátricas e que Luísa
deveria ser acompanhada por um psicólogo. Boa hora em que ela
procurou ajuda: sem o seu apoio teria com certeza posto um ponto final à vida. O mundo parecia desabar.
Felizmente, aos
poucos, Luísa foi melhorando. O apetite voltou. A pele deixou de estar tão
seca. As erupções cutâneas foram desaparecendo. O que mais demorou a voltar foi
o apetite sexual. Michel teria também de ter paciência e saber esperar.
Eu pensava que
tudo estava a correr bem. Desde o final do tratamento, Luísa tinha organizado
muitas exposições. O trabalho criativo tinha sido o seu grande escape a todos
estes problemas, que embora se soubessem passageiros incomodavam imenso. Pelas
redes sociais, tinha seguido as inaugurações das exposições em tantos lugares,
Lisboa, Paris, Biarritz, Bruxelas, Milão, até na Vidigueira e em Vila Real.
Agora, ao ouvir
a história desde novo episódio clínico de Luísa, fiquei apreensiva. Não sei porquê, mas achei que se tratava de uma doença psicossomática. Que
se passaria com a Luísa? Não quis perguntar-lhe assim de chofre.
. Nem imaginas, um dos herpes cresceu como um
tumor no pescoço – para fora e para dentro. Estava em risco de morrer
asfixiada.
Seria o ignis
sacer, o fogo selvagem, de que falavam os antigos? A ira selvagem que estava escondida e que agora se manifestava. A erisipela é como um enfraquecimento da resistência
anímica que pode levar a um ataque de herpes, que algo afetou o sistema nervoso
que agora se revela. Algo se tinha passado. Não quis perguntar-lhe logo de
chofre. Ela iria contar-me entre duas garfadas.
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Etiquetas: love story
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