segunda-feira, julho 01, 2019

Luísa


@Maria Melo





Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Florbela Espanca

 

O dia estava quente. Assim que saiu do carro avisou logo:
- Não posso apanhar sol na cicatriz.
Não via nada. Que cicatriz? Com o seu vaporoso vestido branco, Luísa avançava esvoaçando até à grande sombra da árvore centenária no meio do jardim. E começou a contar.
- Nem imaginas como eu estava. Parecia uma bruxa. Só não comecei a voar sobre uma vassoura porque mal me podia mexer.
As dores de amor podem mesmo matar. Ao ver-se traída, abandonada como um trapo velho, Luísa mostrou-se forte. Mas a raiva que sentiu por dentro, começou a grassar. Primeiro rebentou um pequeno herpes no canto do lábio, depois outro, e outro e outro.
Eu estava longe de tudo, Não sabia o que se tinha passado. A última vez que nos víramos tinha sido há um ano, estava ela curada dum terrível vírus que quase a matou. Toda feliz tinha-me enviado um SMS: “Já não tenho vírus. Foguetes de cores variadas”.
Este vírus foi mais um obstáculo difícil de ultrapassar que lhe tinha consumido quase toda a força anímica. “Um azar nunca vem só”, diz o povo. E na realidade assim tinha acontecido. Sebastião, o filho tinha casado e aos poucos foi-se afastando dela. Sem razão, pelo menos aparente. Primeiro com desculpas que pareciam plausíveis, depois com desculpas esfarrapadas até que rompeu o contacto de vez. Por essa altura, Luísa teve de ser operada ao apêndice. Uma cirurgia mais do que rotineira. Perdeu muito sangue e teve de receber uma transfusão de sangue – e, azares dos azares, recebeu sangue dos infelizmente famosos lotes contaminados que vieram da Áustria e aos quais a então ministra da Saúde portuguesa tinha feito orelhas moucas aos avisos. Esses produtos estavam infectados com o vírus da hepatite B e com excesso de pirogénios.
Na altura nada sabia. A hepatite C é uma doença viral que leva à inflamação do fígado e raramente desperta sintomas.  Luísa vivia sem saber o que se passava dentro do seu corpo. É uma doença malandra que geralmente não manifesta sintomas na sua fase inicial. Os sintomas explodiram quando Luísa se encontrava sem defesas emocionais.
O caminho da recuperação foi longo. Havia longas filas de espera para o tratamento e até para o transplante. Como vivia dentro e fora, Luísa conseguiu ser tratada num hospital estatal francês. Mesmo não tendo problemas financeiros, o tratamento de mais de 20 mil euros por série era incomportável à sua bolsa. O tratamento, à base de uma combinação de medicamentos antivirais a serem tomados ao longo de várias semanas, foi muito agressivo tanto física como psicologicamente. O médico tinha-a avisado. Iria sentir-se extremamente cansada e ter dores de cabeça terríveis. Iria cair o cabelo. Iria emagrecer tanto que iria ficar com o aspeto de anorética. A visão iria fiar muito diminuída e haveria dias em que pareceria que não conseguiria respirar. Iria sentir problemas de comportamento e variações no humor.
Mas pior que tudo seria a depressão que se iria instalar de tal forma que até poderia levar ao suicídio. O médico tinha-a avisado de que os doentes com hepatite C crónica têm uma maior prevalência de perturbações psiquiátricas e que Luísa deveria ser acompanhada por um psicólogo. Boa hora em que ela procurou ajuda: sem o seu apoio teria com certeza posto um ponto final à vida. O mundo parecia desabar.
Felizmente, aos poucos, Luísa foi melhorando. O apetite voltou. A pele deixou de estar tão seca. As erupções cutâneas foram desaparecendo. O que mais demorou a voltar foi o apetite sexual. Michel teria também de ter paciência e saber esperar.
Eu pensava que tudo estava a correr bem. Desde o final do tratamento, Luísa tinha organizado muitas exposições. O trabalho criativo tinha sido o seu grande escape a todos estes problemas, que embora se soubessem passageiros incomodavam imenso. Pelas redes sociais, tinha seguido as inaugurações das exposições em tantos lugares, Lisboa, Paris, Biarritz, Bruxelas, Milão, até na Vidigueira e em Vila Real.
Agora, ao ouvir a história desde novo episódio clínico de Luísa, fiquei apreensiva. Não sei porquê, mas achei que se tratava de uma doença psicossomática. Que se passaria com a Luísa? Não quis perguntar-lhe assim de chofre.
. Nem imaginas, um dos herpes cresceu como um tumor no pescoço – para fora e para dentro. Estava em risco de morrer asfixiada.
Seria o ignis sacer, o fogo selvagem, de que falavam os antigos? A ira selvagem que estava escondida e que agora se manifestava. A erisipela é como um enfraquecimento da resistência anímica que pode levar a um ataque de herpes, que algo afetou o sistema nervoso que agora se revela. Algo se tinha passado. Não quis perguntar-lhe logo de chofre. Ela iria contar-me entre duas garfadas.
@Maria Melo


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