sexta-feira, julho 05, 2019

Tiago – o marido

@Maria Melo


Conhecia o Tiago desde sempre. Ele andava num colégio de rapazes e ela num de raparigas. Tinham muitas actividades juntas. Ele gostava de tudo o que estava ligado ao desporto. Ela sonhava e desenhava. E apoiava-o. Como quando ele se começou a dedicar à vela, chegando a velejador olímpico nas classes de Dragão e Star. Enquanto eles treinavam, ela ficava sentada no areal a desdenhar o que via. António tinha 15 anos, quando embarcou em Sesimbra, na sua primeira grande aventura da vela. Com mais dois amigos, que tinha conhecido nas competições, Jorge e Michel. Num veleiro clássico de 12 metros, fizeram juntos nas férias de verão a costa de Portugal, de Espanha e de Marrocos, sonhando com uma volta ao mundo em barco à vela. Ela apoiava Tiago e os seus dois amigos como se de irmãos de tratasse. E desenhou o que Tiago e os amigos lhe descreveram.
Quando acabou o ano lectivo e regressou a África, onde os Pais moravam, Tiago pediu a um amigo que lhe fosse para lhe entregar um bilhetinho ao aeroporto, muito dobradinho e que na parte de fora tinha escrito: Depois de ler rasgue e deite fora, sim? (Não presta). Não é nada de importância:
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Amor
Já sei que não era nada a sério, escrever eu ou tu…. De mais a mais nem sou primo, nem menino daqueles que a tua amiga inventa. Mas como não te vou dizer adeus, quis escrever agora, já.
Boa viagem, sem enjoar, como eu, boas férias, estuda a Matemática, como eu vou fazer e … juizinho. Daquele que eu disse pelo telefone mas não expliquei (talvez explique um dia).
                Um beijinho pequenino = a um que dei na sua (enorme) mão
                Adeus
O teu namorado enamorado

As férias em Nova Lisboa passaram-se… a estudar Matemática para o exame de Setembro. Não fazia mais nada do que resolver os problemas do livro de exercícios do Palma Fernandes. O estudo era felizmente interrompido pelas cartas de Tiago, que iam chegando, atrasadas, mas a um ritmo regular.
Estás bem, amor querido? E estes dias sem mim a guardar-te, têm sido bons ou muitos cansativos?
Eu amo-te, bijú, e tenho saudades tuas. Custa-me muito não te ter cá depois de já estar habituado aqui, em Santa Margarida, à tua presença, embora leia menos e faça menos coisas úteis. Mas é o amor!....
Quero comprar um carro. Até os meus Pais me dizem que um carro faz muita falta e faz já parte da vida. Vou ver se acelero a compra do automóvel. Toda a gente me aconselha o R5. Vai ser uma classe, tu a guiares um R5!
Vou esperar ansiosamente pelo dia do teu regresso! Deus queira que andes bem, amor. Eu estou sempre contigo.
Beijo-te, querida!
Teu (quase) marido apaixonado.

Assim que acabaram o liceu e juntaram algum dinheiro, casaram. Amavam-se perdidamente. Ele começou a trabalhar com técnico de ar condicionado e ela, apesar do seu aspecto frágil, vaporoso, candidatou-se a vendedora duma empresa de comercialização de gruas. A única mulher numa equipa só de homens. E a melhor. A que mais vendia.
Sebastião nasceu como verdadeiro fruto do amor. Ela e Tiago adoravam-no. A vida corria bem mas ela começou a sentir que lhe faltava o ar. O único escape que tinha eram os seus bloquinhos. Com os seus desenhos descrevia o que lhe ia na alma. Sentia porém que precisava ainda de aprender muito.
- Sei desenhar, Tiago, mas tenho de aprender as técnicas.
- Amorzinho, tu és boa por ti. Não precisas de aprender técnicas nenhumas.
Ela voltava para os seus caderninhos, os seus desenhos não a satisfaziam. Sim, eram bons, mas podiam ser melhores.
Tiago não compreendia as suas ânsias de mais saber.
- Mas para que queres tu saber técnicas? Tu és vendedora de gruas, melhor ainda, és uma fantástica vendedora. Ainda há semanas ganhaste o prémio de melhor vendedora da Península Ibérica. Queres mudar de profissão? Queres ser pintora? O que queres?
Ela desistiu de lhe tentar explicar. António não entendia que era o desenho que a mantinha viva. Que lhe dava ânimo para enfrentar o mundo seco e sem interesse das gruas. Não, não valia a pena explicar-lhe mais.
E aos poucos foram-se afastando. Ele passava o tempo livre no mar, no barco. Ela desenhava enquanto Sebastião brincava.
Até que sentiram que já nada tinham em comum. Eram amigos, muito amigos, mas o amor, a paixão de outrora tinha-se perdido no quotidiano.


@Maria Melo

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