sexta-feira, outubro 09, 2009

A leoa IV

IV
Além as reflexões políticas e sobre os momentos vivos que então se vivia, Luísa sentia uma espécie de tempestade interior própria talvez dos seus 16 anos. Tudo rodava na sua cabeça, sem encontrar sossego, nos conflitos interiores para os quais não encontrava solução. Tudo era posto em causa. Até a consciência. Numa carta à sua melhor amiga, Luísa questiona-se sobre o Sim e o Não. O Dever e o Não-Dever. Enfim, a consciência. “Para que se há-de ter consciência? Não se viveria melhor se nunca se tomasse consciência do que se faz? Fazia-se. Ponto. Agradava ou não. Dava prazer ou não. Não importava. Mesmo que se fizesse o que não se devia, não nos preocupávamos. Mas afinal, pensando bem, nem devia ser assim tão divertido. Às vezes, até distrai esse constante roer da consciência”.
Dias havia em que passava rapidamente da alegria intensa à tristeza sem fim. De manhã sentia-se feliz, imensamente feliz, capaz de abraçar todo o mundo e com uma grande vontade de viver. À tarde, sentia-se prostrada. “Às vezes tenho até medo de mim própria. Tenho medo do futuro. Tenho medo do que estes pensamentos me possam causar. Porque quererei eu ter a lua e o sol? Quero coisas impossíveis de alcançar. E no entanto, continuo a imaginá-las e a pensar nelas. E, ainda por cima, quero que aconteçam. Tenho horror à vida banalíssima. Tenho medo de me casar e ter uma vida normalíssima. Porque quererei ser diferente? Porque quererei fugir desta rotina? Porque lhe tenho tanto horror? Porque tenho medo do futuro, do que venha a acontecer? A primeira resposta poderá ser insegurança. Não confio em mim. Eu que apregoa a confiança em todos e repudio a desconfiança, não tenho confiança em mim. Se eu pudesse ter mão na minha imaginação, se pudesse Pará-la! Mas o pior é que me sinto bem longe deste mundo, onde tudo acaba em bem, onde me encaixo e não tenho problemas.
Luísa pergunta, pergunta, mas nunca encontra respostas. É a crise da adolescência. Quer é ser feliz.

sexta-feira, outubro 02, 2009

A leoa III

III
Luísa cresceu. Foi amando, foi vivendo, foi viajando, foi conhecendo novas terras e novas gentes. Sempre muito atenta ao que estava à sua volta.
A noite era a sua grande amiga. Gostava de ficar pela noite dentro a ler, a pintar, a escrever, a estudar. No seu diário anota: Os únicos ruídos que oiço são o badalar dos três relógios cá de casa. Se apurarmos o ouvido conseguimos também ouvir o tic-tac apressado do relógio da cozinha. Parece que tem o complexo de ser pequeno e como tal tem um tic-tac apressado e uma campainha de despertador muito estridente. Não sei porquê mas este badalar dos relógios dá-me uma grande sensação de paz e calma. Durante o dia, com as correrias rápidas e contínuas ninguém liga aos ses longos e pesados badalares. É assim, nesta atmosfera que eu gosto de estudar. Na calma da noite, com uma boa música de fundo, sinto-me viver. Penso que se for dormir agora, paro a vida. Durante o dia, todo este ambiente que me rodeia fica totalmente modificado e eu não consigo concentrar-me.
Gosto da noite. A sua escuridão, a paz que ela traz é boa. Só me faz pena termos d dormir. Mas será que é mesmo forçoso o sono? Não haverá ninguém que invente algo apra se conseguir passara sem dormir? Seria o ideal. Assim, já não se perdia tempo – é que dormir é uma pura perda de tempo.
Dormir de dia é uma pena; não vale a pena desperdiçar o sol e o bem-estar que o amanhecer traz. Dormir de noite é uma perda de horas. Nós vivemos tão pouco que se não aproveitamos todas as horas, todos os minutos, nunca faremos nada que nos agrade.
Gosto do silêncio. Gosto de visitar igrejas, fora das horas de missa. Toda aquela grandiosidade, o silêncio, a semi-escuridão fazem-nos parar e reflectir. E eu gosto de pensar. Gosto do silêncio porque consigo pensar sem que nada me interrompa. Dar largas aos meus pensamentos e à minha imaginação. Deixar correr a caneta pelas folhas e escrever tudo o que me vem à mente. É bom, sinto-me bem.
Porque nos havemos de preocupar com tanta coisa inútil? Há problemas tão importantes.


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Sem grandes sobressaltos lá se passaram os anos do liceu. Mas que rumo seguir após o liceu?
Luísa volta-se de novo para o seu diário: Se calhar vou ser professora. Ontem ao recreio, estive a ensinar umas coisas sobre sucessões à Mariazinha. Hoje no recreio, expliquei a mesma matéria a uma colega dela. Saí da explicação satisfeita, donde conluio que gosto de ensinar. Por isso, talvez vá seguir a carreira do professorado. Além disso, ser professora não ocupa o tempo todo do dia, mas sim uma parte, o que também me agrada, pois gosto de estar em casa, nas minhas pinturas, nas minhas costuras, a ler. Houve aí uns tempos em que estive hesitante entre Matemática e outro curso (uma Engenharia qualquer). Até que descobri uma engenharia que me satisfaz: Engenharia Geográfica. Eis a minha resolução: matriculo-me em Matemáticas e, como os três primeiros anos são comuns, resolvo depois que curso hei-de seguir
Uns dias mais voltam as dúvidas: QUE CURSO HEI-DE TIRAR? Não é qual a profissão a escolher, nem o que quero ser ou para o que tenho vocação; isso são problemas mais complicados e que ficam para pensar noutra altura).
Meses de pois, volta a escrever sobre as suas razões que a levaram a trocar Matemática por Medicina. Não se pense que foi tão repentinamente como parece. De vez em quando pensava em Medicina mas como uma mera hipótese. O certo é que eu até já tinha pensado em Enfermagem; mas, podendo eu tirar um curso superior, não iria para aquela profissão que apenas exige o 10º ano. Eu tenha mais possibilidades.. No início do 3º ciclo, fiquei um pouco abalada ao ouvir dizer, da minha professora de Matemática, que esta disciplina não era só contas e, quem gostava só das contas, não gostava de Matemática e quem, perante a afirmação “É preciso demonstrar que 2+2=4” a achasse estúpida, não estava dentro do espírito das Matemáticas. Eu engoli. Pensei e repensei no que a professora de Matemática e cheguei à conclusão que a Matemática é uma especulação, uma pequena filosofia. É mais teórica que prática e eu gosto muito mais duma coisa prática ou de algo que vise um fim do que uma simples matéria teórica e especulativa. Além disso, o curso de Matemática oferece, como mais provável, a profissão de professora. E pensando bem, eu gosto de ensinar uma ou duas pessoas, mas não sei se gostaria de ensinar uma turma de 40. (...) A Medicina, além de sempre me ter atraído, oferece-me um fim prático (e útil) que eu desejo. Há uma colega minha que tinha escrito as qualidades que um médico deve possuir: ter bom equilíbrio nervoso, uma saúde excelente, gosto pelo estudo e sólido bom senso. Possuo-as?
A ida para a universidade é o início duma vida nova, em todos os sentidos. Com algum tempo, pôde dedicar-se a outras actividades extra-curriculares. Arranjos florais, decoração, línguas, dança moderna. E observação do país em plena Revolução dos Cravos – apesar dos seus poucos 16 anos.

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No final de Abril de 1974, escreve no diário: Ao ver as reportagens na TV, reparei que, quer na maneira como fazem as perguntas, quer na insistência de alguma em especial, esperam que as respostas sejam sempre contra o antigo regime. Reconheço (quem não reconhece?) que o país antes do 25 de Abril estava num caos e que, mais tarde ou mais cedo, alguma coisa haveria de acontecer. Mas será que durante este 48 anos em que estivemos sob o jugo fascista nada se fez de positivo? Foi tudo mal e errado? Se antigamente o país estava num extremo, é com algum exagero que agora o estão a julgar.
No programa “A política de todos nós”, reparei que as perguntas eram feitas de maneira a conseguir respostas negativas. Em certas pessoas obtinha-se o resultado esperado, noutras parece que não. Bem sei que ainda há muita gente com medo de falar:
- Você sabe o que aconteceu no dia 25 de Abril?
- Não, ah, é verdade, foi quando a minha irmã morreu. Eu queria telefonar para o resto da família e disseram-me que não era possível.
Será que há alguém que não sabe o que aconteceu há uma semana, no dia 25?! Mas a maneira como se fazem as perguntas, influi muito nas respostas.
No programa “Crónica – os pescadores de Sesimbra”, o apresentador “queria” que uma mulher casada com um pescador doente, dissesse quer era preciso construir um centro de saúde. Mas ela não se decidia e a dada altura disse: “… mais bem do que eu ninguém o trata!”
É certo que o povo tem de ser educado politicamente – “Você sabe o que é a política?”, perguntou o jornalista. Resposta: “É falar contra o governo” (!) -, mas não é dizendo só mal do regime deposto e bem de qualquer outro que se o consegue educar. Devem-se mostrar objectivamente os principais partidos para que o povo possa depois fazer livremente a sua escolha. E ao falar das ideias fundamentais, não podemos excluir nenhumas.
Se alguém critica com realismo algo da actual situação, é logo apelidado de fascista. Será isto a liberdade?