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@Maria Melo |
Se queres ser o meu senhor
e teres -me sempre ao teu lado
não me fales só de amor
fala-me também do fado.
Frederico Carvalho & Aníbal Nazaré
"Vox populi, vox Dei", diziam os antigos, o povo português
costuma dizer (infelizmente) "Quanto mais me bates, mais gosto de
ti". Há quem não acredite, mas basta ver as novelas brasileiras para se
acreditar. Ah, é verdade, há também quem diga "A minha vida dava um
romance"; eu, porém, digo: "A minha vida dava uma novela brasileira,
ou um romance de faca a alguidar à portuguesa."
O início é igual a todos os inícios: era uma vez um rapaz e uma rapariga.
Começando assim, facilmente se deduz o que vem a seguir. Foi o amor à primeira
vista - o rapaz ao ver a rapariga apaixonou-se loucamente. A rapariga surgiu na
vida dele como um relâmpago no meio da noite. Ela vinha do país do sol, da
vida, das praias, onde se tentava aproveitar a vida (aliás, viver não é só
trabalhar), onde o dinheiro não era tudo, mas enfim, onde verdadeiramente se vivia.
Era como cantava Sérgio Godinho: "Tu que me falas de estradas / E
eu só conheço um carreiro”.
Ele, coitado, além de viver num país onde tudo o que se disse acima, não
existia, tinha tido uma infância também diferente. Uma infância sem amor, sem
família, onde havia choro, ranger de dentes, discussões, destruição física e
espiritual. Ela não: a família dela era quase a família ideal, um ambiente
familial de paz e amor, que fez com que ela crescesse generosa, livre,
responsável, firme, forte. Ela queria “conquistar " o mundo, queria andar
por todo o lado e, mais tarde, com toda a experiência recolhida, transmitir e
dar tudo a uma família. Ele queria "conquistar" uma rapariga e
começar uma família. Ela, vinda de uma família numerosa, não queria que lhe
dessem tudo, não queria o exagero. Ele vindo de uma família de filho único precisava
do exagero. E começou por lhe querer oferecer o céu e a terra, a chuva, o
vento, os flocos de neve, grandes declarações de amor. Declarações de amor
noite e dia, 24 horas por dia.
"Amo-te, amo-te, amo-te, tu és para mim o ar que respiro, sem comer e
dormir posso eu, viver sem ti é que não..." E ela, que queria respirar, começou a sentir-se
sufocada. Ela que queria ter o prazer das pequenas coisas, o prazer de ter de
fazer trabalhar o seu mecanismo do pensamento, começou a não ter tempo de o
fazer - bastava ela pensar "Gostava de ter o céu...", e o céu
aparecia-lhe nas mãos.
“Adoro-te, adoro-te, adoro-te,
ADORO-TE, adoro-te, adoro-te, adoro-te,
ADORO-TE” – uma folha A4 metida
debaixo da porta dela.
Ela oferecia-lhe amizade e ele esperava que ela lhe dissesse grandes
declarações de amor, que ela ficasse quase que amuada se ele saísse de ao pé
dele, que ela lhe dissesse "Tu és o ar que respiro". Mas para ela,
ele era só um bom amigo.
E ele insistia, com cartas e declarações de amor.
“Sabe que dia é hoje?
Tiveste o azar de conhecer um grande chato
Que mesmo longe se lembra sempre de ti
e te manda um ____________________ (escolhe!)”
O tempo passou, ou melhor, foi passando. Para ele, ela era a mais bela, a
mais inteligente, a mais dotada. Ele mostrava-se fraco, no sentido de sentido
de falta de autocontrolo, no sentido de perder a verdadeira dimensão das
coisas.
Ele já lhe tinha contado como tinha reagido quando a sua primeira
experiência de vida em comum tinha fracassado. Ela pensou, ele é mesmo
extremista; nunca se preocupou muito, pois nunca lhe tinha prometido nada. E
eis que um dia, no meio de uma conversa, ela diz-lhe:
- Eu acho que entre nós dois não dá.
Ele ficou imóvel, depois desatou num choro profundo enquanto lhe rogava:
- Não digas isso, volta para mim, não te vás, deixa-nos, ao menos, tentar.
- Mas tentar para quê, se eu sei que não dá?
Ele só chorava, e chorava, e chorava e implorava:
- Volta, volta, volta!
Passado algum tempo, quando ela lhe voltou a dizer o mesmo, ele perdeu o
controlo. Ela encontrou-o sentado à porta do quarto com uma garrafa de vinho na
mão.
- Tem juízo! - disse-lhe ela. - Vai para o teu quarto dormir.
Ele para o quarto foi, mas passou a noite a pôr-lhe debaixo da porta folhas
A4 com declarações de amor, com pedidos de retorno.
As coisas foram piorando. Ela não se sente livre, já agora, não estando sequer comprometida com ele. Ele 'fiscaliza' quando ela sai, quem lhe telefona, lê-lhe os recados que lhe deixam na porta - esquece que "se queres ser o meu senhor / e teres -me sempre ao teu lado / não me fales só de amor / fala-me também do fado."
Ela tinha um amigo, com quem saía algumas vezes e
com quem gostava de estar. E eis que os ciúmes surgem. E um dia quando ela
voltava de um passeio com o amigo, ele corre atrás do carro do amigo e dá-lhe
um papel: "Querido Rui! Apesar de me teres tirado a minha princesa, eu não
quero ser teu inimigo. Convido-te para um chá."
Logo o amigo comentou:
- Uma pessoa não tira ninguém a ninguém. Somo todos livres e independentes.
Parece que estamos no jardim infantil e gritamos: "Essa boneca é
minha!". Diz-lhe somente que não o posso ajudar.
Chegou a noite da passagem do ano. Ela saiu com o amigo. Quando volta, ele
diz-lhe:
- Se amanhã ainda me queres ver, é melhor chamares já a ambulância!
Ela vai ao quarto dele e tira-lhe das mãos o aparelho de medir a tensão
arterial, depois a faca do pão e por fim um escalpelo. E diz-lhe:
- Esta história da chantagem emocional não funciona comigo. Antes pelo contrário,
tem um efeito negativo.
Uma última declaração de amor, onde já não existia amor, mas ele não sabia.
O que é que te aconteceu?
Falei várias vezes
para a tua empresa, mas não te encontrei.
Deixe recado.
Não me deixes assim.
Cada vez que, na
estrada, vejo uma grua, fico a pensar em ti. Bem sei que não é romântico, mas é
o que sinto.
Volta!
Ele é boa pessoa, mas...
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@Maria Melo |